sábado, 10 de abril de 2010

vocabulário ortográfico











História vocábulo

Tomei um livro nas mãos. Não é um livro de história.

É um Vocabulário Ortográfico, contém 110.000 vocábulos na ortografia oficial. Veio em edição primorosa da Editora Globo do ano de 1934 – um carimbo informa que pertenceu a agência do Banco do Brasil de Cachoeira do Sul.

Os 110.000 vocábulos em ordem alfabética, desfilam em listas, palavras que suspiram por usos ou que já caducaram em grafia e sentido.

As folhas ásperas ressecadas evidenciam que o tempo foi implacável com a matéria daquelas palavras.

Há um cheiro que ultrapassa o cheiro de livro, como também vai além do cheiro de livro velho, há um cheiro de raiz emanando de cada folha, há uma textura de terra em cada página, há uma cor de um amarelo quase tão forte e semelhante a cor dos documentos que achamos nas coisas do meu avô quando morreu.

E ali elas esperaram. As palavras.

Me enterneço com a segurança e ingenuidade de uma ordem instituída no Brasil de 1934, as normas ortográficas foram referendadas pelo ministro Capanema, pelo Presidente da República Getúlio Vargas e todos os membros da academia de Letras Brasileira. As portarias normativas são o prefácio do livro!

Não há como não folhear, mas o quebradiço das folhas dá uma sensação nem um pouco acolhedora. É desértico.

No meio das páginas existem selos para cartas, deixo-os no lugar, parecem também à espera de uso.

Deixo o livro sobre a mesa de trabalho. Continuo a observá-lo, aberto em uma página meio solta.

É um livro que tem a aspereza da espera em vão. Por alguma razão que me escapa, penso que devo intervir nele pondo poesias.

Mas é um livro ressecado, as páginas precisam de algum modo voltar à vida. Ser umedecidas? Já que a terra já parece estar por ali.

Aguardo uma forma de escavar aquelas palavras raízes.

Penso em palavras que contraponham- se à secura morta. Procuro no próprio livro a palavra com a qual marquei meu último aniversário, pintando-a na minha mesa de trabalho. Ávida. Encontro no gênero masculino. ÁVIDO.

Resolvo separar o conceito (a raiz da palavra-semantema) da marcação de gênero. Avid.

ÁVIDA

Graficamente, não por concepção morfológica, ávida contém a vida
Está contida na palavra grávida

Inverto o acento e respiro e tenho um brinde: À vida!

Começo tentando soltar as páginas da cola e da costura que as mantém no formato de livro, vou recolhendo segmentos secos quebradiços, mas as folhas rasgam-se antes de libertar-se da costura.

Passo, então a desenhar por incisões, retirando todos os semantemas dos vocábulos, deixando nas páginas os prefixos, sufixos e as marcas de gênero e número. Sobram, portanto, desenhos em preto que se repetem

Recolho os retalhos-palavras e exponho as listas de vazios na mesa, lado a lado, vou usá-las como raiz e terra das minhas próprias palavras. Ainda não sei como.

A fim de realizar meu trabalho, escolho as folhas das quais retirei os semantemas dos vocábulos, desse modo vou expor um espaço para preenchimento de qualquer idéia-palavra que utilizará os prefixos, sufixos e marca de gênero que restam nas folhas.

Desenho nos vãos por meio das incisões, os desenhos são traços irregulares, (ante o risco do estilete, as folhas ressecadas mais se rasgam do que se deixam cortar.) O desenho vai ficando com marcas de arranhaduras.

Antecedendo ao corte, há a leitura de cada vocábulo para a identificação do semantema. É uma leitura feita sob o vidro de corte que segue o fio da lâmina do estile É uma ação mental (cirúrgica?), extração, com cortes e rasgos no papel.

De outra sorte, a imprecisão do corte pode vir a revelar mais que a deteriorização do material, pois expõe o vacilo do estilete ante a fraca pressão da mão, são deslizes sobre os significados e as descobertas de formas inusuais de construção de pensamento. A mão treme como que relutando em apartar esta descoberta linguística.

É um processo cansativo que vai ficando dolorido a medida que a mão cansa do manejo do estile. Os resultados vão sendo percorridos com o olhar, se acumulando em páginas vazadas umas sobre as outras ou estendidas em fileiras “de compreensão.”

O vão que fica é o desenho. e
O vão faz alusão à palavra.

Se inverter as páginas tenho silhuetas de cidades-fantasmas, mas isto não me chama a atenção.

Retorno a página a posição inicial, talvez fosse a hora de criar as minhas palavras por entre os vãos.

Ou não.

O espaço do que está para realizar-se é sempre repleto de possibilidades e sentidos de falas.

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